Nos últimos anos, a Petrobras passou das páginas
de economia para as de política (e de polícia) dos grandes jornais e revistas
do país. Desde a eclosão da operação Lava-Jato, em março de 2014, e das
primeiras revelações sobre o escândalo do Petrolão, a empresa – que já foi uma
das maiores do mundo, mas perdeu 85% de seu valor em função da corrupção e de erros
de gestão – foi quase que diariamente tema de reportagens as mais diversas,
cada qual com revelações mais espantosas sobre o esquema montado para desviar
recursos e irrigar o caixa de partidos políticos. Mas faltava um balanço
objetivo, uma narrativa que amarrasse os fios soltos da cobertura da imprensa e
desse conta das diferentes e complexas frentes desse escândalo, cuja apuração
completa, aliás, ainda está longe de chegar ao fim. É essa narrativa que
oferece a jornalista Roberta Paduan no livro-reportagem “Petrobras – Uma
história de orgulho e vergonha” (editora Objetiva, 392 pgs. R$ 54,90).
Com um texto ágil, em ritmo de thriller, e fundamentado numa pesquisa rigorosa, a autora recapitula outros casos de mau uso político e desvio de verbas na história da Petrobras desde a redemocratização – até a empresa se tornar totalmente refém de um esquema de corrupção bilionário, a partir de 2003.
Com um texto ágil, em ritmo de thriller, e fundamentado numa pesquisa rigorosa, a autora recapitula outros casos de mau uso político e desvio de verbas na história da Petrobras desde a redemocratização – até a empresa se tornar totalmente refém de um esquema de corrupção bilionário, a partir de 2003.
Roberta levou dois anos para escrever seu livro: mergulhou
em arquivos de jornais e revistas e em planos estratégicos e de negócios da
empresa; leu centenas de documentos, incluindo relatórios de analistas, atas de
reuniões, transcrições de delações premiadas e sentenças da Justiça;
entrevistou uma centena de funcionários e ex-funcionários da Petrobras, alguns
mais de dez vezes.
Nesta entrevista, Roberta
fala sobre as disputas políticas de bastidores que estiveram na origem do
assustador processo de espoliação que levou ao colapso da empresa que já foi –
e ainda pode voltar a ser – motivo de orgulho para os brasileiros.
ROBERTA PADUAN: A corrupção e a incompetência caminharam juntas o tempo todo. Na
verdade, a estratégia e a gestão da companhia foram colocadas a reboque dos
interesses políticos. As decisões de quantas refinarias deveriam ser
construídas e onde deveriam ser construídas, por exemplo, são decisões que
deveriam ser de cunho estritamente estratégico, mas não foi o que
aconteceu. Obedeceram, claramente, a interesses
políticos, o que pode ser o pedido de um governador, de um senador, de um
deputado. O objetivo de multiplicar obras pelo país fez com que a companhia
gastasse bilhões e mais bilhões de dólares sem ter retorno por esses
investimentos. Quanto mais obras, mais contratos e mais propinas eram gerados.
Tudo foi jogado nas costas da Petrobras, como se o caixa da estatal fosse
infinito. Para azar da companhia, dos acionistas minoritários e dos brasileiros
em geral o preço do barril de petróleo, que permaneceu nas nuvens por muitos
anos, ajudou a camuflar os desmandos que ocorriam.
- Você escreve na introdução do
livro que "nunca um governo planejou e executou um plano tão amplo de uso
da estatal como ocorreu durante os governos do presidente Lula e da presidente
Dilma ". O que diferenciou a corrupção na Petrobras ocorrida em
outros governos da corrupção durante os governos do PT?
ROBERTA: O PT nomeou, pelo menos, metade da diretoria da Petrobras para realizar
o Petrolão. Também nomeou sindicalistas para postos estratégicos na empresa. Ou
seja, os sindicatos, que poderiam identificar e denunciar o Petrolão, estavam
comprometidos com o governo. Isso ajudou a neutralizar a resistência. Até o
ouvidor da companhia havia sido indicado pelo ex-ministro José Dirceu, também
envolvido no esquema da companhia. Ficou muito mais difícil reagir ao esquema.
Os funcionários que tentaram foram para a geladeira, perderam seus cargos. Fora
isso, o Petrolão alimentava os partidos políticos e dezenas de parlamentares, que
não queriam perder suas propinas e não denunciavam o esquema. Foi um conluio
muito amplo. Até a oposição aceitou dinheiro para se calar na CPI aberta em
2009 – refiro-me ao Sérgio Guerra, do PSDB. As tentativas
anteriores haviam sido mais tímidas. No caso do Collor, por exemplo, um
presidente da estatal, o Luis Octávio da Motta Veiga, denunciou a tentativa de
cooptação.
- É comum se afirmar que o
Petrolão foi a continuação do Mensalão – tese defendida inclusive pelo
Ministério Público Federal em recente denúncia. Você concorda?
ROBERTA: Discordo, porque o Petrolão começou a ser estruturado já no período de
transição entre os governos do presidente Fernando Henrique e Lula. A escolha
de pelo menos dois diretores com mandato para cobrar propina foi feita durante
a transição ou nos primeiros dias do governo. Renato Duque e Nestor Cerveró
assumiram seus postos sabendo exatamente o que deveriam fazer. O Paulo Roberto
Costa assumiu em maio de 2004, também sabendo muito bem qual seria a sua
missão. Portanto, o esquema dentro da Petrobras já estava em funcionamento
antes mesmo de o Mensalão ser descoberto. Na verdade, hoje já se sabe que a
Petrobras alimentou o pagamento de mensaleiros, enviando recursos para o
próprio Marcos Valério, condenado no Mensalão. Na minha opinião, Petrolão e
Mensalão são a mesma coisa, duas faces da mesma moeda.
Também é importante lembrar que as primeiras
operações envolvendo propina gerada em contratos da Petrobras ocorreram em
2003. A contratação das duas primeiras plataformas sob o governo Lula,
refiro-me à P-51 e a P-52, ocorreram em 2003 e 2004. Antes disso, Lula foi
gravar o primeiro programa eleitoral do PT, em 2002, no estaleiro do empresário
Augusto Ribeiro de Mendonça Neto, que hoje é delator da Lava Jato. O então candidato
Lula prometeu, no discurso feito no estaleiro, que as duas plataformas seriam
construídas no Brasil, se ele ganhasse a eleição. Isso aconteceu na campanha,
em 2002. Ele ganhou, as duas plataformas foram contratadas nesse mesmo
estaleiro e geraram propinas milionárias. Hoje, o delator corre o risco de
perder o acordo de delação premiada por ter omitido que pagou propina pelas
duas plataformas. Seria o caso de a força-tarefa perguntar a ele se o
presidente Lula sabia das propinas das duas plataformas, se já havia alguma
conversa sobre o assunto durante a campanha eleitoral.
- Durante a apuração, quais foram
os momentos e descobertas mais marcantes e surpreendentes para você? Que
personagens te surpreenderam, positiva ou negativamente, e por quê?
ROBERTA: Muitas descobertas foram surpreendentes na apuração, tanto na
pesquisa sobre a Petrobras quanto na da Lava-Jato. Cheguei à conexão do José
Dirceu e do Silvio Pereira com o Petrolão ainda em 2014, quando ninguém falava
deles. Algumas pessoas acharam, inclusive, que eu estava perdendo tempo em me
deter nesses dois personagens. Quando a Lava-Jato começou a fazer as conexões,
mais de um ano depois, foi muito angustiante, pois o livro não estava pronto,
mas também foi muito gratificante, pois era uma indicação de que eu estava no
caminho certo. O problema é que ainda faltava muito a pesquisar sobre a
empresa. Fui perdendo possíveis "furos" ao longo do caminho. Entre os
personagens que mais me surpreenderam estão o ex-presidente Fernando Collor de
Mello e seu ex-ministro Pedro Paulo Leoni Ramos. Eles se perenizaram no poder,
mesmo depois do impeachment de 1992.
Mas há personagens que surpreenderam pelo lado
positivo. Muitos funcionários, alguns já aposentados ou que deixaram a empresa,
mostraram que tinham orgulho da carreira construída na estatal por fazerem
parte de uma elite profissional, por terem ascendido pela via do mérito, por
terem participado de projetos pioneiros em termos tecnológicos, ou projetos dos
quais dependiam o abastecimento do país. Chega a ser emocionante perceber a
ligação emocional que muitos deles ainda têm com a empresa. São pessoas que não
se curvam ao papel de meros cumpridores de ordens, quando essas ordens são
ilegais ou imorais. Esse é um tema que temos de aproveitar para discutir em
toda e qualquer oportunidade, nas escolas, na hora do jantar em família, nas
empresas.
- Quais foram os momentos mais
críticos da Petrobras nos governos anteriores aos do PT, em termos de
corrupção, desde a redemocratização? O que impediu que essas crises se
transformassem em escândalos da proporção do Petrolão?
ROBERTA: Creio que período Collor foi crucial, apesar de muito curto, pois
iniciou a tática de cooptação de funcionários de carreira por agentes
políticos, para facilitar esquemas de corrupção, o que ficou conhecido como
Esquema PP, uma referência às iniciais do nome do ex-ministro Pedro Paulo Leoni
Ramos, hoje também envolvido na Lava Jato. O primeiro governo Fernando Henrique
Cardoso, que permaneceu com o presidente Joel Rennó, herdado do governo Itamar
Franco, também foi marcado por contratações polêmicas. Várias sondas e
plataformas foram contratadas de uma mesma empresa, a Marítima, do empresário
German Effromovich. Essa empresa não tinha experiência com esse tipo de
construção, nem tampouco robustez financeira para o volume de encomendas que
recebeu da estatal. Nesse caso nunca ficaram provadas irregularidades, mas o
presidente seguinte da estatal, Philippe Reichstul, também nomeado por FHC,
cancelou encomendas e demitiu funcionários em razão de operações controversas.
Creio que alguns fatores contribuíram para que os
problemas não viessem à tona. Nossas instituições começavam a funcionar com
mais liberdade, pois nossa democracia era ainda mais jovem que hoje. Órgãos de
controle, como a Polícia Federal e o Ministério Publico, por exemplo, eram
menos experientes nesse tipo de investigação. Aparentemente, os esquemas também
eram bem menores em extensão. Os episódios anteriores de corrupção estruturada
também sofreram resistência mais forte por parte dos chamados
"técnicos", que reagiram entregando, inclusive, seus cargos e
procurando a imprensa para fazer denúncias. Existia até uma expressão, "a
ditadura dos técnicos", usada por diretores, presidentes e ministros, que
viam suas propostas rechaçadas por pareceres elaborados por funcionários que se
opunham a projetos, como a construção de uma refinaria em determinado local, ou
a compra de uma plataforma. No caso do petrolão, a resistência ficou mais
difícil, pois o esquema vinha de cima para baixo e estava espalhado por várias
diretorias.
- Você entrevistou Paulo Roberto
Costa dias antes de ele ser preso, e ele aparece no livro como um homem bem
preparado, educado e competente. Outros diretores envolvidos na Lava-Jato
tinham carreiras sólidas. O que levou profissionais respeitados, bem
remunerados e bem-sucedidos a se envolverem com a corrupção, com todos os
riscos que isso traz, inclusive o risco da prisão?
ROBERTA: Creio que são pessoas muito ambiciosas e que acreditaram que não seriam
descobertas, pois tinham a guarida de pessoas muito poderosas. Esse ponto é
importante, porque esses executivos tinham muito a perder, mas se sentiram
protegidos por figuras que estavam acima deles. É claro que há pessoas que
não aceitariam cometer crimes, mesmo acreditando que não seriam pegas, mas isso
é uma questão de caráter. Sobre o preparo deles, descobri uma coisa importante
durante a apuração. O setor de petróleo é muito complexo, pelo menos no caso da
Petrobras, que trabalha em águas profundas e ultra profundas. O Paulo Roberto,
por exemplo, tinha uma carreira respeitável dentro da Petrobras, mas em outra
área, a de exploração e produção. Não era um expert em
abastecimento. O Renato Duque também não tinha conhecimento das várias áreas da
diretoria gigantesca que assumiu. Isso faz muita diferença. O Cerveró também
tinha décadas na empresa, mas não tinha tarimba nas áreas que assumiu. Mas isso
pouco importava. Eles conheciam o funcionamento da companhia e podiam ser
chamados de funcionários de carreira, o que dava a aparência de que o governo
respeitaria a companhia. Isso ajudou a colocar o Petrolão em funcionamento e
por tanto tempo.
- Muitos diretores foram
investigados e presos, mas nenhum presidente da Petrobras foi diretamente
responsabilizado ao longo da operação Lava-Jato. Como você explica isso?
ROBERTA: Não acredito que um esquema de corrupção tão extenso, profundo e longevo
pudesse ser criado e mantido sem o conhecimento dos presidentes da
companhia. Até agora nem Gabrielli nem Graça foram indiciados. O José
Eduardo Dutra, que foi o primeiro presidente da estatal no governo Lula,
faleceu pouco antes de ser ouvido pela Justiça. O Dutra e o Gabrielli são
quadros históricos do PT. Ajudaram a fundar o partido e entraram na Petrobras
no início do governo Lula. O Gabrielli foi diretor financeiro da estatal antes
de se tornar o presidente que permaneceu mais tempo no comando da Petrobras em
toda sua história. A Graça, braço direito de Dilma Rousseff, tem um ponto a seu
favor, pois, aparentemente, demitiu os diretores corruptos. No entanto, aceitou
a presidência da companhia sem denunciar malfeitos, nem realizar a profunda
operação limpeza que era necessária. Somente as investigações da Polícia
Federal e do Ministério Público Federal serão capazes de esclarecer a natureza
e a extensão da participação de cada ex-presidente no petrolão.
- Em que grau o Conselho de
Administração da Petrobras pode ser responsabilizado pelo esquema de corrupção
montado na Petrobras e por decisões desastrosas como a compra da refinaria de
Pasadena?
ROBERTA: Acho que todo esse processo, não só o de Pasadena, tem de ser realizado
com muito cuidado, pois o esquema era muito bem montado para ter aparência
legal e de transparência. Não podemos esquecer que a Petrobras está submetida
às regras dos xerifes do mercado financeiro brasileiro e americano.
Considerando as regras da empresa, só o Conselho tem autoridade para aprovar
uma aquisição como a de Pasadena. Ocorre que quem sugere uma operação
desse tipo são gerentes e diretores que, a princípio, têm de ser os "pais
da matéria" e, na teoria, deveriam trabalhar para que a empresa alcançasse
lucro. Ficou muito claro que os gerentes e o diretor da área Internacional
esconderam informações muito importantes relativas às reais condições de
Pasadena. A operação foi vendida por eles como uma oportunidade excepcional de
negócio. O próprio Paulo Roberto Costa, que deveria ter brecado a operação, por
seu suposto conhecimento da área de refino, deu aval para a compra. Hoje já sabemos
que recebeu US$ 1,5 milhão para não se opor à compra. Na minha avaliação, parte
do Conselho sabia e outra parte não sabia das irregularidades ocorridas na
compra de Pasadena. Creio que o mesmo ocorreu na diretoria. Nesse ponto, os
investigadores terão de apurar melhor também a participação de José Sérgio
Gabrielli, que atuou diretamente na negociação, como descrevo no livro.
- Como essa história ainda não
acabou, foi difícil colocar um ponto final no livro? Não teme que novas
revelações tragam algum tipo de reviravolta no caso?
ROBERTA: Foi difícil, sim, colocar o ponto final, porque a tentação de
contar todas as histórias foi grande. Muita coisa ficou de fora. Entretanto, o
objetivo principal era contar como a Petrobras chegou à situação que está hoje.
Acho que essa resposta foi dada no livro, ainda que novas operações
fraudulentas continuem sendo confirmadas e novos personagens apareçam. O modus
operandi está todo ali.
- Após esse processo de
depuração, como você enxerga o futuro da Petrobras? Como evitar que ingerências
políticas voltem a comprometer a empresa, no futuro?
ROBERTA: A Petrobras tem ativos extraordinários, muito valiosos. Não me refiro
apenas às suas reservas, mas também a seu acervo de conhecimento, ou seja, o
conjunto de funcionários altamente qualificados que ela tem. Não sei,
honestamente, como seria possível blindar a companhia contra intervenções
políticas. Uma tentativa de blindagem foi feita entre 1999 e 2002, mas, como
vimos, não foi suficiente. Enquanto a Petrobras estiver subordinada a um
governo, não vejo possibilidade de blindagem. É um tema para especialistas em
governança e direito administrativo tratar. Não sabemos nem se hoje, apesar de
todas as descobertas da Lava Jato, a Petrobras está livre de interferências
políticas. A classe política é muito habilidosa e consegue dar nó em pingo
d'água. Nós, da imprensa, continuamos noticiando que tal presidente ou tal
diretor de estatal foi indicado por tal partido político, como se essa prática
fosse legítima e aceitável. Não é. Empresa estatal é empresa. Tem de gerar
lucro e reverter esse lucro a seus acionistas. No caso da Petrobras, a parte
que cabe à União tem de ser revertida para a sociedade brasileira, não aos
políticos brasileiros. Os executivos de uma estatal deveriam ser recrutados e
escolhidos em processos de seletivos que só levassem em consideração seu
conhecimento, experiência, habilidades profissionais e pessoais. O que um
senador, deputado ou ministro quer em troca ao nomear um diretor de estatal?
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