Dedução corriqueira
de que atuais governadores são perdulários e responsáveis por toda a confusão
que se vive decorre de uma visão superficial e preconceituosa
O ano se inicia sem solução para os estados com elevados buracos
financeiros, como no caso de Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul,
onde os atrasos de pagamento a fornecedores e, mais recentemente, a servidores
(inclusive aposentados), estão virando rotina e se agigantando. O perigo é a
decretada “calamidade financeira” atingir proporções de uma crise social aguda.
(Recorde-se a de Alagoas no governo FH, quando uma greve de policiais levou à
intervenção branca no estado).
Inexistem passeatas ou apedrejamento de prédios na área federal. A União
só evitou uma situação parecida com a dos estados ao financiar via emissão de
moeda (com óbvio risco de hiperinflação) seus gigantescos déficits primários
acumulados em 2016-17, da ordem de R$ 300 bilhões. Só não aceita adiantar
dinheiro aos estados, mesmo com lastro na securitização de recebíveis de sua
propriedade. Isso poderia ocorrer como parte do equacionamento de seu enorme
problema previdenciário, que, de resto, é idêntico ao que ocorre — também sem
solução — nas contas da União. Em estudo que postei no meu blog e em
inae.org.br, isso é explicado em detalhe.
O governo acaba de apresentar uma nova proposta de adiamento do
pagamento do serviço das dívidas estaduais, com contrapartidas duras para os
governadores aprovarem nas assembleias, mas sem contemplar uma injeção de
recursos capaz de permitir que esses entes ponham seus atrasados em dia e
negociem mudanças estruturais adequadamente. De acordo com a receita de Brasília,
servidores, entre outros, teriam de absorver perdas financeiras expressivas sem
saber quando passariam a receber seus rendimentos regularmente.
A Câmara desaprovou essa proposta, e o governo vetou a desaprovação,
estando o assunto hoje no limbo. Continua, então, o alto risco de uma crise
social sem precedentes nas capitais respectivas. Liminar da presidente do STF
acaba de impedir novo bloqueio mensal das contas do Estado do Rio para
pagamento de parte do serviço de sua dívida com a União. Isso mostra que a
intransigência do governo em adotar uma solução razoável para o assunto poderá
gerar o pior dos mundos, que seria a suspensão pura e simples dos pagamentos de
dívida pelos estados, supondo o julgamento final do mérito a seu favor, em face
das frágeis camadas atingidas. Seria o Poder Executivo se mostrando, uma vez
mais, incapaz de resolver seus próprios problemas junto com o Congresso,
enquanto o STF salva a pátria.
A saída via securitização de recebíveis decorre da constatação de que o
“X” da questão é o gigantesco déficit previdenciário do setor público, que
produz um passivo atuarial igualmente gigantesco nos estados, na União e nos
municípios. Esse passivo tem de ser equacionado conforme dita o artigo 40 da
Constituição, combinando a destinação de ativos e de contribuições dos
empregados, aposentados, pensionistas e empregadores a um fundo específico para
tal fim.
Um subproduto importante desse equacionamento é exatamente a
possibilidade de antecipar a receita da venda de parte desses recebíveis no curto
prazo, que normalmente levaria muito tempo para se viabilizar nos mercados
privados, para cobrir os déficits previdenciários de curto prazo, hoje com
valor próximo aos dos buracos financeiros citados. Ou seja, ao equacionar os
dois buracos simultaneamente, matar-se-iam dois coelhos de uma cajadada só.
Só falta agora o STF repetir o que fez há pouco, na novela dos juros
simples versus compostos, mandando os demais poderes chegarem a uma solução,
como a que sugeri, que equacione simultaneamente os problemas conjuntural e
estrutural.
A dedução corriqueira de que os atuais governadores são perdulários e
responsáveis por toda a confusão que se vive decorre de uma visão superficial e
preconceituosa sobre a matéria. Examinando os balanços daqueles três estados em
2015, na pior recessão de nossa história, constatei que, em média, os
governadores só administram, de fato, parcela de 40% da Receita Corrente
Líquida estadual (RCL).
Com essa reduzida fatia, tiveram que pagar os gastos com pessoal ativo,
outros custeios e investimentos de todas as secretarias do Poder Executivo,
exceto Saúde e Educação, e toda a conta de inativos e pensionistas do estado. E
como esse orçamento residual de secretarias (que inclui a área crítica de
segurança) consumiu 31% da receita, ficou impossível bancar a conta de inativos
e pensionistas, que foi de praticamente o mesmo valor — 32%, sobrando o déficit
de 23% da RCL, que se reduziu para 15% desta, após consideradas receitas de
capital residuais de 8% da RCL. Daí ser a previdência o “X” da questão.
Obviamente, os 60% iniciais foram usados para pagar os gastos dos
verdadeiros “donos do orçamento”, com pouca ingerência dos governadores, ou
seja, as despesas dos demais poderes (Legislativo, Judiciário, Ministério
Público, Tribunal de Contas), exclusive inativos e pensionistas, e os gastos
financiados com receitas cativas nas áreas de Saúde e Educação, sem falar no
Serviço da Dívida.
Fonte: O globo - 09/01/2017